O Papel da Mulher: baseado na vida de Débora – parte I

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Estudo de Juízes 4 e 5

Ultimamente, tenho falado muito sobre Juízes, isso porque na minha leitura anual foi o livro que mais ocupou meu tempo (até aqui). Sinceramente, nunca pensei que pudesse aprender tanto a partir desse livro, tem sido uma fonte inesgotável de aprendizado! Sendo mulher, algo em especial chamou minha atenção nesse livro: a forma como Juízes apresenta a atuação das mulheres, sempre associada à fraqueza masculina[1]. Quase todos os episódios onde uma mulher é apresentada, é também ressaltada a fraqueza de algum homem no mesmo contexto, eu diria que esse livro traz duras críticas à conduta dos homens naquele temo. Mas a que se deve isso? O que o período de Juízes tem a nos ensinar sobre o papel da mulher e por que não, do homem? Vamos aprender sobre isso juntos.

Após a morte de Josué, o povo de Israel se rebelou contra o Senhor, praticando o que era reprovável aos Seus olhos. Eles se voltaram diversas vezes aos ídolos das nações provocando a ira do Senhor. Como consequência da violação da aliança, Ele os entregava nas mãos dos seus inimigos, de modo que não lhes pudessem resistir. Até que o povo se lembrava do Senhor, clamava e Ele se compadecia suscitando juízes no meio deles para livrá-lo da opressão.

Porém, falecendo o juiz o povo voltava a se desviar dos caminhos do Senhor repetindo um ciclo constante de: apostasia, opressão, clamor e libertação ao longo de todo o livro de Juízes.

Os juízes eram primordialmente “libertadores” do povo de Israel, contra seus inimigos. O termo hebraico frequentemente usado para caracterizá-los é “yâsha´”, um verbo que indica a ação de “libertar”, “resgatar”, “defender” ou “levar à salvação”. Os juízes, como a própria narrativa revela, eram homens falhos e pecadores, que nem sempre fizeram a coisa certa, mas que foram levantados por Deus para cumprir um propósito específico. Evidentemente o termo empregado (yâsha´) aponta para uma realidade maior: Cristo, o verdadeiro libertador e Juiz de Seu povo, aquele que viria libertar o Seu povo dos inimigos de uma vez por todas. O livro de Juízes também aponta para a santidade de um Deus que não tolera o pecado, mas ainda assim é misericordioso para com aqueles que o buscam.

“Os juízes eram heróis locais que, de alguma maneira governavam partes distintas do território de Israel. Eram líderes tribais militares […] Eles eram instrumentos dos atos de redenção que eram seguidos por alguns anos de paz.”[2]

Antes de ler, interpretar e tirar qualquer ensinamento de um livro tão rico como Juízes é preciso ter em mente que se trata do relato de um período em que: “Faleceu Josué, filho de […] Foi também congregada a seus pais toda aquela geração; e outra geração após eles se levantou, que não conhecia o SENHOR, nem tampouco as obras que fizera em Israel. Então, fizeram os filhos de Israel o que era mau perante o SENHOR; pois serviram aos baalins. Deixaram o SENHOR, Deus de seus pais, que os tirara da terra do Egito, e foram-se após outros deuses, dentre os deuses das gentes que havia ao redor deles, e os adoraram, e provocaram o SENHOR à ira. Porquanto deixaram o SENHOR e serviram a Baal e a Astarote” (Jz 2:8-13). Essa é a introdução do livro de Juízes, portanto, toda a leitura desse livro deve ser feita tendo em mente que se trata de uma geração incrédula, idólatra, fruto da desobediência de pais que falharam em transmitir a Lei do Senhor aos seus filhos. Consequentemente, esses filhos de Abraão não conheciam o Deus de Abraão e devido à influência dos povos daquela terra eles passaram a se identificar com suas práticas pagãs.

Outro texto que reafirma o estado espiritual daquela geração se encontra em Juízes 21:25: “[…] não havia rei em Israel: cada um fazia o que achava mais reto”, ou seja, muitos dos padrões de conduta apresentados não são ideais, mas consequência da obstinação de um povo. Cada um fazia o que bem entendia, a Lei de Deus tinha deixado de ser o padrão de conduta dos israelitas. Eles só se lembravam de Deus como uma memória antiga que seus pais contaram (6:13).

O primeiro juiz de Israel foi Otniel (3:9): “Clamaram ao Senhor os filhos de Israel, e o Senhor lhes suscitou libertador [yâsha`]”. Depois dele Israel voltou a fazer o que era mau perante o Senhor e Ele os entregou nas mãos dos moabitas (3:12) durante dezoito anos, até que novamente o povo clamou “e o Senhor suscitou libertador [yâsha`]”. O segundo juiz foi Eúde (v.15); depois dele veio Sangar e “também ele libertou [yâsha`] a Israel” (v.31). Então, os filhos de Israel voltaram a fazer o que era mau perante o Senhor (4:1) e Ele os entregou nas mãos de Jabim, rei de Canaã, cujo comandante do exército era Sísera. Jabim oprimiu Israel durante vinte anos. Nesse ponto da narrativa, o texto não nos apresenta imediatamente outro libertador – basta observar a sequência e o padrão em que os juízes são apresentados. Ao invés de dizer que Deus levantou outro libertador para Israel, o autor introduz uma personagem importante para o próximo momento histórico de Israel: Débora. Ela não é apresentada como um dos libertadores de Israel, mas introduz a ascensão do próximo libertador, a saber, Baraque, filho de Abinoão. Débora é apresentada primeiramente como esposa de Lapidote e como profetiza (diferentemente dos outros juízes). Ela não ocupava uma posição de governo político militar e em nenhum lugar lhe é atribuído o termo “yâsha`” (libertador), o que deixa claro que Débora não foi chamada para libertar Israel e ela não se colocou nessa função. Além disso, o fato de atuar fora das dependências do tabernáculo evidencia que a atribuição de profetisa não estava relacionada ao sacerdócio. Débora estabeleceu um lugar onde as pessoas podiam procurá-la para se aconselharem. Segundo Champlin, “é possível que os conselhos dela cobrissem todas as facetas da existência humana; mas sem dúvida ela não competia com o tabernáculo, com o sumo sacerdote e com o culto ali efetuado.”[3] ela atendia o povo ao ar livre e se tornou uma mulher renomada por sua sabedoria e espiritualidade.

Débora permanecia sentada debaixo de uma palmeira que ficou conhecida como Palmeira de Débora onde ela julgava os casos trazidos pelos filhos de Israel. Wayne Grudem[4] destaca que o texto de Juízes “não afirma que Débora governava o povo de Deus, que o ensinava em público e nem que o liderava militarmente”:

Débora “julgava” (heb. mishpāt) as pessoas em particular, quando subiam até ela. Quando texto diz que “Débora […] julgava a Israel naquele tempo” (Jz 4.4), o verbo hebraico shāphat, “julgar”, não significa, nesse contexto, “reger ou governar”, antes, significa “decidir controvérsia, deliberar com sabedoria nas questões civis, políticas, domésticas e religiosas entre as pessoas”. Isso é evidente porque o próximo versículo descreve seu modo de “julgar”: “Ela atendia debaixo da palmeira de Débora” e “os filhos de Israel subiam a ela em juízo” […] não se diz nunca que Débora ensinava ao povo reunido em grupo ou congregado. Embora julgasse quando a procurava (Jz 4.50, jamais foi uma sacerdotisa[5].

É importante ressaltar que o contexto no qual Débora se levantou e começou a julgar as causas que eram levadas até ela é descrito (cf. Jz 5:7) como um momento de apostasia e apatia moral e espiritual: as pessoas haviam deixado de ser e de fazer o que era correto; a palavra hebraica “châdal” (usada em 5:7) traz um sentido de desistência e renúncia; as aldeias de Israel também haviam ficado desertas (muitos tinham sido levados e outros haviam fugido) deixando as cidades abandonadas. Nesse contexto Débora relata que se levantou como “mãe de Israel”. Sua intenção não era assumir o poder, mas seu zelo por manter “a casa em ordem” fez com que ela acolhesse o povo e orientasse aqueles que ainda tinham interesse em viver em justiça e retidão. Pelo quadro apresentado, parece que até mesmo os líderes religiosos haviam deixado de cumprir sua função para com Deus e diante do povo.

Débora é então apresentada como alguém que desejava auxiliar o povo. Não há relato de que Deus a tenha levantado para libertar o povo, mas há um relato claro de que Deus usou essa nobre mulher, não só para pronunciar o chamado de Baraque (Jz 4:6,7), como para confirmar a liderança masculina sobre o povo de Deus. Esse relato é especialmente marcante. Muitas “feministas cristãs” se apoiam na atuação de Débora para argumentar em prol pastorado feminino, porém, o mais interessante é que basta uma leitura atenta ao capítulo 4 para perceber que Débora está bem distante do ideal feminista. “A Bíblia apresenta a judicatuta de Débora como uma reprovação da falta de liderança masculina”[6]. O texto enfatiza a situação incomum em que uma mulher tinha que julgar Israel usando uma sequência de palavras para enfatizar que Débora era uma mulher, traduzindo literalmente, o versículo diz: “E Débora, uma mulher, uma profetisa, a esposa de Lapidote, ela julgava a Israel naquela época”[7]. Embora estivesse numa situação onde a fraqueza masculina é evidenciada, Débora não se conformou à situação. Ela se sujeitou a Palavra de Deus que veio a ela e comunicou a Baraque que preparasse um exército porquanto o Senhor entregaria Sísera, comandante e todo o exército cananeu, em suas mãos. O capítulo 4, portanto, narra o chamado de Baraque para libertar Israel da opressão, ele é o “yâsha`” (libertador) que Deus levantou para o povo. Débora foi instrumento fundamental nessa ação, mas ela não assumiu a dianteira como sugerem as feministas, nem recebeu essa função da parte de Deus – não há informação suficiente no texto para tal conclusão. A postura de Débora reflete sujeição à vontade de Deus ao atribuir a Baraque o dever de libertar o povo.

A despeito da promessa de que Deus estaria com ele, Baraque se acovardou diante do desafio e solicitou que Débora fosse com ele na batalha, caso contrário, ele não iria. [O livro de Juízes traz exemplos consideráveis de como o pecado afetou o caráter dos homens naquele período, cf. Jz 6:11,15; 9:53-55; 16:16-19; 19:22-30]. A resposta de Baraque não revela somente sua covardia, mas sua obstinação em responder à ordem de Deus. Débora atendeu ao pedido, mas não sem mostrar a ele as consequências negativas de sua escolha. Deus havia prometido entregar Sísera, nas mãos de Baraque (5:7), mas uma vez que ele depositou sua confiança em Débora (não na palavra de Deus), ele perderia a honra de derrotar seu inimigo e tal honra seria dada a uma mulher estrangeira chamada Jael (4:21)[8].

[Continua…]

[1] Débora e Jael (Jz 4 e 5); A filha de Jefté (Jz 11:29-40); O casamento de Sansão (Jz 14); Sansão e Dalila (Jz 16:4-21); O levita e sua concubina (Jz 19); Esposas para os benjamitas (Jz 21).

[2] CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento interpretado: versículo por versículo,vol. 2 – 2.ed. – São Paulo: Hagnos, 2001, p. 1010.

[3] CHAMPLIN, op. cit., 1013.

[4] GRUDEM, Wayne. Confrontando o feminismo evangélico. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.71.

[5] GRUDEM, loc. cit.

[6] GRUDEM, op. cit., p. 72.

[7] GRUDEM, loc. cit.

[8] Jael era parte de um povo nômade, os queneus, que cf. Jz 1.16 eram descendentes do sogro de Moisés.