Amor próprio, um novo mandamento? (pte 1)

CARTA À MINHA AMIGA SOLTEIRA - HomossexualidadeFalar a respeito do amor é um desafio. Qualquer abordagem sobre o tema tende a oferecer um risco, pois cada pessoa parece possuir uma compreensão muito particular do que é o amor.  Se tratando de tempos como o nosso em que absolutos têm sido rejeitados e conceitos diluídos, falar de amor pode ser até mesmo ofensivo. Ao contrário do que a cultura possa ensinar, se tratando de amor, não precisamos nos lançar em uma busca subjetiva e cheia de relativismos. Há um Deus absoluto que revelou em Sua Palavra o que é o amor: Deus é amor. Ao invés de buscarmos nossas próprias respostas e definições a Escritura, a Palavra absoluta de Deus, nos convoca à total rendição diante da verdade revelada de Deus.

Quando deixamos de ser moldados pela cultura e olhamos para as Escrituras, logo percebemos que o amor não tem a ver essencialmente com aquilo que sentimos, queremos ou pensamos, e, sim, com a Pessoa de Deus. Logo, o amor não está aberto a novas definições ou conceitos à parte de sua Fonte. Ter isso em mente é muito importante, pois, mesmo entre cristãos, é notável que a compreensão do que é o amor tem sido baseada muito mais em idealismo romântico e subjetivo do que nos fatos objetivos apresentados pelas Escrituras.

Amar, um mandamento

Acreditar que o amor é meramente um sentimento é um equívoco. Ora, embora o amor bíblico abranja a totalidade do nosso ser, incluindo nossas emoções, elas não são o centro daquilo que a Bíblia apresenta como amor.  Isso é evidente no simples fato de que o amor nos é apresentado como um mandamento e não uma escolha baseada em sentimentos momentâneos. O mandamento é taxativo e deve ser cumprido quer estejamos sentindo o coração aquecido ou não.

O mandamento é tão enfático que ordena que amemos não somente aqueles que nos bendizem como também aos nossos inimigos – que amenos e oremos por eles (Mt 5:44). Se o amor fosse meramente uma questão de sentimentos, não poderíamos cumprir esta ordem, pois, dificilmente estaríamos propensos a sentir algo benigno em relação aos nossos inimigos, sendo assim, o amor bíblico deve, obrigatoriamente, ir além dos sentimentos.

Amar, uma necessidade

Ao ordenar que o amemos Deus não está tentando suprir uma necessidade da Divindade e sim uma necessidade da humanidade. Ele não precisa ser amado por nós, pois de nada necessita (At 17:25), mas nós necessitamos amá-lo para que vivamos. Não é um capricho da Divindade que está sendo suprido, e, sim, uma necessidade vital do homem. Em sua soberania e graça Deus nos proporciona meios para que aprendamos a amar. Sua Lei é o principal desses meios, sem ela não saberíamos que precisamos amar a Deus mais do que a nós mesmos. Ela orienta nossos corações para a direção certa e nos revela que qualquer amor que concorra com o nosso amor a Deus é um ídolo.

Deus também proporciona o nosso próximo para que tiremos o foco de nosso reflexo e aprendamos a amar aos nossos semelhantes. O primeiro “próximo” com quem nos relacionamos é a nossa família. Nesse seio aprendemos o que é amar. Amar envolve obediência, serviço, paciência, perdão, comunhão. É no lar que o marido aprende o que é amor: provendo, protegendo e se sacrificando por sua esposa. É no lar que a esposa aprende o que é amar: se doando, se sujeitando e cuidando do seu marido. É no lar que a mãe aprende a amar, abrindo mão de si mesma para dar vida a outro e se doando em prol de sua família. É no lar que o filho aprende a amar, refreando seus desejos a fim de submetê-los a autoridade dos pais e aprendendo a compartilhar aquilo que possui com seus irmãos.

O pecado fez com o amor que deveria ser voltado a Deus e estendido ao próximo passasse a ser focalizado em nós mesmos. Nos tornamos pessoas egocêntricas e amantes de si mesmas. Por isso, mais que um mandamento e um meio de nos relacionarmos uns com os outros, o amor é também redentivo. Deus nos concedeu o mandamento para nos salvar de nós mesmos.

O amor nos salva de nosso egoísmo, de nossa avareza, de nossa ambição; o amor nos salva do ódio, da vingança, da falta de perdão, nos salva da cobiça, do adultério, da rebeldia, do homicídio. Não por acaso, Cristo resumiu toda a Lei descrita em Êxodo 20 em apenas duas sentenças: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo (Mt 22:37 – 40).

O amor vence nosso individualismo, nossa independência e autossuficiência. Nosso coração passa a ser transformado, moldado e lapidado; e ainda que isso inclua dor, lágrimas e sacrifício, esse é o meio mais eficaz que Deus determinou para a nossa santificação.

Dependência, uma faceta do amor

Autonomia e a independência são conceitos modernos que evidenciam o nosso orgulho. A independência tem nos tornado cada vez mais distantes uns dos outros, nos legando relacionamentos superficiais. O amor nos revela que não somente necessitamos amar, como necessitamos também ser amados e acolhidos. O amor nos revela o quão necessitados somos do amor de Deus; mas ele nos revela também o quão necessitados somos de nossos semelhantes. Fomos feitos para a dependência, de Deus acima de tudo e uns dos outros. A independência nunca foi um alvo.

Em tempos em o mundo nos diz que sozinhos podemos chegar mais longe, o amor nos revela o quão dependentes e necessitados somos de Deus e das pessoas.

O amor nos torna dependentes à medida que nos permite reconhecer nossa carência e necessidade. O amor nos conjura a sermos não somente doadores, mas também receptores. Nos conjura a receber afeto, perdão, consolo, misericórdia e compaixão com toda a humildade. O amor desmascara nossas formas do egoísmo. É egoísmo ser sempre o refúgio e fortaleza, mas nunca se refugiar e se fortalecer no outro. É egoísmo mostrar ao outro o quanto precisa de você sem que ele saiba o quanto você precisa dele. É egoísmo sempre consolar, mas engolir o choro sozinho para não demonstrar fraqueza.

Quem ama tem necessidade do outro. Ao passo que egoísmo nos faz querer independência, o amor nos leva a depender uns dos outros. O amor é uma via de mão dupla, ele dá, mas também recebe. Ser o ombro de alguém nos ajuda a não sermos egoístas, ter o ombro de alguém nos ajuda a não sermos autossuficientes. O amor remove as barreiras que nos impedem de achegar ao outro como semelhante sem nos preocuparmos em parecer inferiores.

Ressalvo aqui que, embora a dependência mútua seja um conceito belo e bíblico, não devemos, contudo, perder de vista que a queda afetou radicalmente todas as nossas relações. Assim sendo, essa dependência, uma faceta do amor, que deveria ser bela e gloriosa, se torna nociva e destrutiva quando exaltamos a criatura acima do Criador. Daí surgem todos os desajustes emocionais, conforme temos visto e, até , vivenciado.

Tempos de desafeto

Diferentemente da nossa cultura, a Bíblia apresenta o amor de maneira muito objetiva e concreta. Não há lugar para o subjetivismo. O amor não é somente um mandamento, mas também uma arca que nos salva do dilúvio ocasionado pelo pecado. Os homens se rebelaram contra Deus, e, deixando de amá-lo, voltaram-se para si mesmos. O resultado dessa rebelião está registrado nas Escrituras e nos livros que nos contam a História da humanidade. Onde não há amor ódio e crueldade são tudo o que resta.

Vivemos tempos de desafeto, tempos de ódio. Pode parecer contraditório, considerando que nossa sociedade exalta tanto o amor, mas trata-se de falso amor, um amor alienado de Deus.

Na eternidade Deus estabeleceu o grande mandamento por meio do qual todo o universo seria orquestrado: amar a Deus sobre todas as coisas. Enquanto o homem obedecesse ao mandamento o universo estaria seguro. Mas, no momento em que o homem desobedeceu, deixando de amar a Deus sobre todas as coisas, o mundo foi tomado por toda sorte de males. É aqui onde nos encontramos: ao invés de amarmos a Deus e ao próximo, nos tornamos amantes de nós mesmos. O amor próprio nos trouxe até aqui.

Amor próprio, um novo mandamento?

“Se tudo que exprimimos por nosso amor é um desejo de ser amado, então estamos num estado bem deplorável” (LEWIS)[1]

 Quem nunca leu ou ouviu frases como: “você precisa se amar mais”, “você precisa pensar mais em você”, “vá atrás dos seus sonhos”, “você pode tudo o que quiser, basta acreditar em si mesmo”? Encontramos esses pensamentos e falas em todos os lugares. Os livros de autoajuda nunca foram tão vendidos, os coachings nunca foram tão “necessários”, a mentalidade de nossa sociedade é autocentrada.

É curioso que embora a Bíblia enfatize tanto o mandamento sobre o amor, em nenhum lugar encontramos como ordenança o amor próprio.  É óbvio que se o homem tivesse dificuldades em amar a si mesmo Deus teria ordenado que ele assim o fizesse, mas não encontramos nenhum indício do mandamento “ame-se a si mesmo” na Bíblia.

Por causa do pecado o homem já nasce voltado para si mesmo. Esta passou a ser a condição natural do homem após a Queda, de modo que a ordem de amar a Deus e ao próximo nos é dada para que tiremos o amor próprio do foco e o orientemos na direção correta.

Mas, talvez você se pergunte: o que há de tão nocivo no amor próprio? Por que ele ofereceria um risco? Para amar o outro não é preciso, antes, amar a si mesmo? Quero começar pelo primeiro questionamento: Para amar o outro não é preciso, antes, amar a si mesmo?

Esse questionamento parte do pressuposto moderno de que o amor próprio deve vir em primeiro lugar, pois ele serve como um escudo, nos protegendo de abusos e riscos à nossa integridade moral, psicológica ou física. Mas, na realidade, o amor próprio não nos protege, ele apenas nos torna egoístas. O que nos protege da sujeição a quaisquer abusos é aquilo que João Calvino chamou de Sensus Divinitatis[2], a consciência de que somos criados à imagem de Deus e que a vida humana é um dom que precisa ser preservado. Esse é o verdadeiro escudo que faz com que não nos sujeitemos a qualquer condição que fira o senso de dignidade e valor que Deus imputou em nossos corações.

Portanto, a resposta é que para amar ao outro não é preciso, antes, amar a si mesmo. Para amar ao outro é preciso, antes, amar a Deus. A capacidade de amar ao próximo como a si mesmo não resulta do amor que nutrimos por nós mesmos, mas do amor que recebemos da parte de Deus.

Nas poucas ocasiões em que a Bíblia traz alguma referência ao amor a si mesmo ela o faz para mostrar que devemos amar ao próximo como somos amados por Deus e como gostaríamos de ser amados pelos homens: com caridade, integridade e respeito.

Continua…

[1] LEWIS, C.S. Os quatro amores. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017, p.144

[2] O termo Sensus Divinitatis, ou senso de Divindade, conforme utilizado nesse contexto se aplica ao fato de que mesmo sendo ímpio, o homem reconhece seu alto valor, o que faz com que ele tenha consciência de que sua vida deve ser preservada. Esse reconhecimento não é outra coisa senão o conhecimento que Deus implantou na consciência de todos os homens.