RACISMO É PECADO?

Eu sei que diante de ânimos tão exaltados é quase um atentado iniciar este texto com uma pergunta que, na realidade, deveria ser uma afirmação. Mas, por favor, não faça julgamento precipitado, tome um fôlego e me acompanhe ao longo das próximas linhas. 

Antes de entrar precisamente na questão do racismo quero iniciar esta reflexão em Tito 2:11-15.

Após mencionar algumas categorias de pessoas (Tt 2:1-10): homens, mulheres mais velhas, jovens casadas, moços, e como o Evangelho deveria afetá-las em suas particularidades, neste ponto o apóstolo Paulo passa a discorrer sobre como o Evangelho atua em todos, de modo indistinto. Ele inicia falando sobre como a graça se manifesta e atua na vida de todos os cristãos.

(v.11) A graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, ela está disponível e é gratuita para homens, mulheres, casadas, solteiras, velhos e moços, negros e brancos; todos são alvos desta graça em Cristo Jesus, sem distinção. 

E o que esta graça faz? Como ela atua? 

(v. 12) A graça nos educa (gr. “paidéuo”, a mesma raiz de “paidagogo” cf. Gálatas 3:24-25, que dá origem à palavra pedagogo). A graça é aqui apresentada como alguém que instrui, orienta e ensina, corrigindo e moldando o caráter pela repreensão e advertência. Em suma, ao contrário da visão limitada que geralmente temos sobre a graça, Paulo mostra que ela é muito mais do que uma porta de entrada para a salvação; ela é ativa na nossa santificação, e nos instrui de forma intencional. 

A graça nos instrui com um propósito, ela nos instrui para algo, para que nos tornemos aptos a renegar a impiedade e as paixões do mundo. Muitas pessoas acreditam que uma visão enfática da graça produz frouxidão espiritual, mas, não se dão conta de que a graça é uma obra perfeita e eficaz da parte de Deus. Ela não somente nos insere na salvação, mas, também, nos santifica para a salvação. A graça nos instrui para

– renegarmos a impiedade;

– renegarmos as paixões mundanas.

Portanto, ninguém que vá a Cristo pode perseverar nestas coisas, pois a graça trabalha na direção oposta a elas. Onde há graça a impiedade e as paixões mundanas precisam ser renegadas.

E por que a graça atua desta forma? 

Para que vivamos (já) no presente século, de maneira sensata, justa e piedosa. Perceba que a graça é um dom por meio do qual temos acesso às bênçãos eternas da salvação, mas, é também o meio pelo qual podemos, já no presente século, desfrutar de algumas dessas bênçãos. Uma das maiores bênçãos da salvação é justamente viver de maneira sensata, justa e piedosa; a renúncia ao pecado e a vida de santificação são bênçãos espirituais e verdadeiros antegozos da eternidade.

Esse viver, de morte do pecado e vida no Espírito, é a forma como todos os cristãos devem prosseguir enquanto aguardam a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo (v.13). Portanto, é fato que, os cristãos vivem para algo: a bendita esperança, e vivem para alguém: o grande Deus e Salvador Jesus Cristo. A graça nos capacita a viver por algo que transcende nossa própria existência e nos conduz a uma espera esperançosa por um fim glorioso.

Mas, o que esse Deus fez por nós? Por que ele é digno de ser tão aguardado? Paulo responde no verso 14: ele a si mesmo se deu por nós.

Desde os tempos primitivos compreende-se que deuses existem para serem servidos; os deuses exigem sacrifícios e exigem que seus adoradores lhes ofertem algo. Mas, veja, o Deus dos cristãos, o nosso Deus, trilhou o caminho que os falsos deuses nunca trilharam, Ele foi o sacrifício e a oferta, Ele serviu. O nosso Deus deu aquilo que nós nunca poderíamos dar, Ele satisfez as exigências que nós nunca poderíamos satisfazer – Ele satisfez a si mesmo para que em seu sacrifício, nós pudéssemos satisfazê-lo. Ele morreu a nossa morte, se tornando o sacrifício que Deus era digno de receber. 

Mas, para que esse Deus se deu por nós? 

Em primeiro lugar, para nos remir gratuitamente e de uma vez por todas de toda a iniquidade. Veja, não para nos remir de uma parcela de iniquidade, mas de toda a iniquidade, a fim de nos conceder o favor eterno de Deus. Aqueles que servem a deuses falsos precisam, de tempos em tempos, levar novos sacrifícios para obter novos favores, para se purificarem, de novo, e de novo. Mas, o nosso Deus sacrificou a si mesmo para remir, de uma vez por todas, todos os nossos pecados. 

Em segundo lugar, Ele se deu para nos purificar, portanto, o que nos torna puros e aceitáveis não é qualquer coisa que esteja em nós – nossa dignidade, origem, cor, sangue, ou qualquer sacrifício vindo de nós – mas, sim, o único e perfeito sacrifício de Cristo. Isso é o que nos concede real pureza. 

Somos purificados para Ele para que, só então, possamos ser parte de um povo, o seu povo exclusivo. Um povo proveniente de todas as nações, línguas, etnias, cores e culturas, um povo zeloso de boas obras, o povo da cruz.

Nesse ponto se faz necessário perguntar: o que caracteriza esse povo?

  1. Eles são remidos em Cristo (v.14);
  2. Eles são purificados em Cristo (v.14);
  3. Eles renegaram a impiedade e as paixões mundanas (v.12);
  4. Eles vivem sensata, justa e piedosamente neste mundo (v.12);
  5. Eles aguardam a bendita esperança e a manifestação da glória do grande Deus e Salvador Jesus Cristo (v.13). 

A única supremacia que reina sobre esse povo é a supremacia de Cristo, o único sangue que fala mais alto entre eles é o sangue de Cristo. Eles são igualmente pecadores e igualmente remidos. Aos olhos de Deus todos são puros, pois foram lavados no sangue do Cordeiro que é Santo. Ele nos purificou a fim de fazer de nós um povo exclusivamente seu, um povo que não adora a outros deuses, um povo que não levanta altares a ídolos – sejam eles quais forem. Um povo zeloso de boas obras, que não aceita servir a qualquer outro senhor senão Cristo. 

Então, Paulo diz a Tito para que exorte e repreenda com toda a autoridade. Talvez devêssemos perguntar: com que autoridade Tito deveria fazer isso? Ora, a autoridade das Escrituras, a Palavra de Deus. Ela é a mãe de todas as Leis, diante da qual nos sujeitamos. A Lei dos homens só é capaz de julgar ações, mas a Lei de Deus julga, não apenas as ações, mas perscruta os corações e traz à luz as intenções. Ela é a autoridade final, de tal maneira que não precisamos temer dizer aquilo que a Bíblia diz, pois ela é a nossa voz, mesmo quando o mundo tenta nos silenciar.

A Palavra de Deus não pode ser silenciada e ela nos concede autoridade necessária para dizermos o que precisa ser dito, independentemente da cor da nossa pele, contexto social ou gênero. Sendo assim, tal como disse o apóstolo Paulo, que ninguém nos despreze diante da exortação e repreensão segundo as Escrituras, pois elas são a autoridade final e suficiente para que todo cristão possa levantar sua voz diante de todo e qualquer pecado.

Certo, mas, como tudo isso se relaciona com o título deste texto? Bem, a Bíblia nos mostra basicamente dois aspectos que nos tornam parte da mesma raça:

  1. Viemos de Adão (Gn 2:7);
  2. Morremos em Adão (1 Co 15:22).

Origem e destino, nisso a Bíblia nos iguala enquanto humanidade. Contudo, há ainda um terceiro e importante aspecto que nos une enquanto cristãos: somos recriados em Cristo. Em cada um destes aspectos a Bíblia nos aponta um fato: somos iguais! Deveria ser óbvio, não?

Quero me ater especialmente ao terceiro e mais importante aspecto da nossa existência o fato de que Cristo, pelo seu sangue se deu para nos remir de toda a iniquidade – inclusive o racismo – e nos purificar para si mesmo, a fim de que sejamos um único povo, um povo exclusivamente seu. “Vós, porém, sois raça [1] eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. (1Pedro 2:9). Em Cristo somos transformamos em uma nova raça, um novo povo; nascemos de novo, não somente como indivíduos, mas como parte de um povo, um povo nunca visto ou conhecido.

Mas, por maior e melhor que seja a unidade trazida pela nova criação, há um detalhe muito importante aqui: em Cristo as etnias não deixam de existir, elas fazem parte da beleza e diversidade da criação e recriação. Em Cristo nos tornamos um só povo, mas nossas características espirituais não excluem as distinções étnicas que Deus estabeleceu entre nós.

Por meio do seu sangue Cristo criou um povo, uma nação e um Reino para si.

Note, Abraão era parte de um povo antes de ser chamado por Deus. Ele possuía uma família, uma cultura e um contexto no qual estava inserido. Contudo, Deus o chamou para que deixasse tudo para trás e se tornasse um novo povo, distinto de tudo e de todos quanto conhecia. De Abraão nasceu Israel, um povo naturalmente parecido com a parentela de Abraão, mas, que deveria ser espiritualmente e culturalmente diferente. Sabemos que Israel era apenas uma sombra das coisas vindouras, Israel apontava para a obra eterna que Deus realizaria ao longo da História chamando “Abraãos” para deixarem suas terras, suas parentelas, suas culturas e se unirem ao povo que Deus estava criando, a nação santa, o Israel de Deus. 

Ao afirmar que em Cristo, nem a circuncisão, nem a incircuncisão são coisa alguma, mas o ser nova criatura (Gl 6:15) e que “dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa.” (Gl 3:28-29) Paulo mostra que, no fim das contas, nossas distinções étnicas, sociais e de gênero não definem a nossa identidade, pois a nossa verdadeira identidade está guardada em Cristo (1 Jo 3:2).

Em Cristo, aquilo que nos une é muito maior do que o que nos distingue. Nossas diferenças são depositadas diante do trono do Cordeiro e tudo o que se ouve ali não tem a ver conosco, mas, com Ele: “A salvação pertence ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro” (Ap 7:10) – esta visão deve permanecer gravada diante dos nossos olhos.

Em Tito 2:1-10, Paulo se refere a diversos grupos específicos: homens, mulheres, jovens, mais velhos, casados, solteiros, e fala a cada um deles de modo particular, contudo, suas particularidades são ofuscadas quando Paulo fala como o Evangelho alcança a todos indistintamente (Tt 2:11-15). Não podemos perder isso de vista, nossas distinções não podem e não devem trazer separação,.

Deus criou as diferenças e Ele se alegra com a diversidade das flores e dos frutos, assim como dos genes humanos capazes de gerar as mais variadas tonalidades de pele e características pessoais. Ao criar um povo para si, Ele poderia abolir as distinções, mas não o fez, nem o fará, pois na eternidade continuaremos sendo negros, brancos, asiáticos, porque Deus quis que assim fosse (leia Apocalipse). E, se Deus, o Senhor do universo exulta em nossas distinções por que nós não deveríamos fazer o mesmo?! Ao deixar de exultar na forma e na diversidade com a qual Ele nos criou, deixamos de glorificá-lo. Ao desprezar a forma e a diversidade para a qual Ele nos criou desprezamos sua obra e pecamos contra o Criador e contra a criatura.

Mas, se compreendemos que somos todos igualmente filhos de Adão, tanto na criação quanto na depravação, então, precisamos concluir que todos somos igualmente pecadores e que o pecado afeta a todos nós indistintamente enquanto humanidade. Ora, se o pecado nos afeta enquanto raça humana de maneira indistinta, então, precisamos reconhecer que não existem pecados para negros e pecados para brancos.

O pecado afeta a toda a raça de forma real, radical e mortal sem discernir cor de pele, etnia, gênero, classe social. O RACISMO é pecado e mata, não somente por ser pecado, mas porque ao longo da História homens e mulheres foram mortos em nome de uma “supremacia racial”. Sim, o racismo é um pecado e precisa ser encarado desta forma para que possamos combatê-lo, de fato; um pecado que atinge a todos, e não apenas determinado grupo étnico; um pecado diante do qual todos estamos suscetíveis, seja em pensamentos ou ações, pois somos todos filhos de Adão.

TODA forma de racismo é absolutamente INACEITÁVEL porque é um atentado contra o desígnio de Deus para os homens. O racismo fere e contraria o propósito de Deus ao nos criar distintos para a sua glória.

Creio que tempos como esse precisam nos levar a uma avaliação, não dos corações dos outros, mas, primeiramente, dos nossos próprios corações. É tempo de autoconfrontação, tempo de trazer luz aos lugares mais obscuros de nossas almas e enxergar nossos próprios preconceitos, contra quem quer que seja. Se sondarmos nossos corações, certamente encontraremos em nós pecados ocultos, ídolos que esse momento tem trazido à tona.

Nossos ídolos adormecidos precisam ser derrubados.

Certamente, o mundo tentará nos colocar uns contra os outros, isso é o que ele faz, coloca em lados opostos: homens e mulheres, negros e brancos, judeus e gentios, ricos e pobres, mas, e quanto a nós, a Igreja de Cristo? Por que deveríamos combater uns aos outros enquanto o pecado tenta nos destruir? Por que deveríamos ir às redes sociais para difamar nossos irmãos, que são parte de nós, mutilando os membros do nosso próprio corpo?

No fim das contas, talvez, tudo isso seja apenas o reflexo de que ainda não compreendemos, de fato, o significado de ser Igreja, de ser criados em Cristo Jesus (Ef 2:8-10). É triste ver nossa prontidão em abraçar os pecados para os quais deveríamos morrer (Tt 2:12). Não estou falando somente do racismo, mas de todos os outros pecados que têm sido tão expostos em nosso meio: orgulho, falta de amor, idolatria, dissensões, facções, invejas, inimizades, ciúmes, ira, discórdias e tantas coisas semelhantes a estas (Gl 5:19-22; Tt 3:3). Que sejamos levados ao arrependimento genuíno. Que nos arrependamos do racismo – SIM, precisamos, urgentemente – mas não somente dele.

A limpeza precisa começar dentro de casa: em mim, na minha família, na minha igreja local, na minha comunidade, em nós. É preciso levar para fora do arraial todos os ídolos que estão ocultos. É preciso expulsar os falsos deuses que têm tentado tomar o lugar de Cristo no nosso meio.

Quando toda a questão deixar de ser sobre nós, quando nossas etnias finalmente deixarem ser o centro, então, Cristo poderá ser o centro. Eu oro para que quando isso acontecer o mundo possa enxergar como a igreja lida com questões raciais, sociais e de gênero e se pergunte: como pessoas tão diferentes podem conviver em paz e harmonia? Como pessoas tão distintas podem amar e servir umas às outras dessa forma? Não é assim que as pessoas se perguntavam quando viam a conduta dos primeiros cristãos? Eles eram agitadores, não porque saíam às ruas quebrando tudo e gritando palavras de ordem, mas porque seu modo viver era radicalmente contrário à cultura. Creio que temos nos perdido nesse ponto, não estamos indo em direção oposta à cultura, estamos andando de mãos dadas com ela!

Nós somos o povo da cruz e, ainda que o mundo padeça em desesperança, nós encontramos em Cristo a verdadeira esperança para combater o racismo contra todos os povos:

“Porquanto, Ele é a nossa paz. De ambos os povos fez um só e, derrubando o muro de separação, em seu próprio corpo desfez toda a inimizade, ou seja, anulou a Lei dos mandamentos expressa em ordenanças, para em si mesmo criar dos dois um novo ser humano, realizando assim a paz, e reconciliar com Deus os dois em um só Corpo, pelo ato na cruz, por intermédio do qual Ele destruiu toda a irreconciliabilidade. E vindo Ele, proclamou a paz para vós que estáveis longe e, da mesma forma, para os que estavam perto; pois por meio dele tanto nós como vós temos pleno acesso ao Pai por um só Espírito! Portanto, não sois mais estrangeiros, nem imigrantes; pelo contrário, sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2:14-19)

Que o mundo possa ver Cristo em nós, e que por meio das nossas diferenças proclamemos que Cristo reconciliou todos os povos por meio do único sangue que é verdadeiramente puro. Que por meio de nossas diferenças proclamemos que não existe qualquer supremacia senão a de Cristo.

Cristo é supremo, minha etnia não, Cristo é supremo, minha condição social não, Cristo é supremo, meu gênero não. Cristo é supremo.

Com isso, quero retomar à nossa pergunta inicial: RACISMO É PECADO? SIM! E todos precisamos combatê-lo, a começar em mim.

No amor de Cristo,

Prisca Lesa


[1] [gr. genós, parentela, tribo e descendência]