Fé, Reforma, Paulo e Os Titãs

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Estamos no último dia do mês de Outubro, dia 31. Enquanto muitos comemoram o Dia das Bruxas nós cristãos celebramos o Dia da Reforma Protestante, 499 anos desde que Martinho Lutero pregou as 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha. Um dos lemas da Reforma Protestante: Sola Fide (somente a fé).

Foi lendo os escritos do apóstolo Paulo que Martinho Lutero se deparou com a terrível verdade de Romanos 1:17: “O justo viverá pela fé”. Pela fé, não pelas obras.

O que nos torna aceitáveis perante Deus não é aquilo que fazemos, mas aquilo que Cristo fez por nós, de uma vez por todas, em sua vida, morte e ressurreição.  Diante de tão sublime sacrifício, todos os nossos atos se tornam como trapos imundos, pois não há um justo, nem um sequer. Não há em nós qualquer mérito para a salvação.

Esses dias eu me lembrei de uma música dos Titãs que ouvia muito na minha adolescência, o nome dela é Epitáfio.

 

Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer…

Queria ter aceitado
As pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria
E a dor que traz no coração…

[…]

Devia ter complicado menos
Trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos
Com problemas pequenos
Ter morrido de amor…

Ela sempre me trouxe um ar meio nostálgico, um misto de arrependimento e desejo de voltar no tempo. Não sei qual a história por trás da canção, mas “epitáfio” significa literalmente “sobre o túmulo”. É aquela frase escrita nas lápides dos túmulos, uma frase que define a vida daquela pessoa, suas conquistas, uma homenagem.

Enquanto cantarolava essa música, me lembrei das palavras do apóstolo Paulo: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé” (2 Tm 4:7). Essas palavras foram umas das últimas palavras do apóstolo a Timóteo antes de seu martírio. Caberiam num epitáfio.

Ele estava pronto para morrer e, em sua última carta, ele não escreveu uma lista de lamentos com coisas que ele devia ter feito ou pelo passado que havia vivido como perseguidor da igreja e todos os erros que havia cometido em sua vida, nem mesmo demonstrou frustração por ter servido tanto à causa de Cristo e terminar sua vida daquele jeito. Ao invés disso, olhando firmemente para o autor e consumador da sua fé, Paulo afirmou com convicção: completei a carreira.

Como Paulo poderia ter tamanha convicção? Ainda havia tanto a ser feito em prol do evangelho, ainda havia tantos problemas a serem resolvidos nas igrejas por ele estabelecidas.  Ainda assim, suas palavras não esboçavam qualquer insegurança ou incerteza. “Fiz tudo o que tinha para fazer e mantive a minha fé até o fim, estou pronto para me encontrar com Cristo”.

Essas palavras podem parecer prepotentes diante do nosso conceito secular de humildade. A mente moderna não vê a humildade como uma virtude e, por isso, distorceu completamente o conceito: ser humilde é você (sempre) se colocar por baixo, não aceitar elogios e menosprezar seus dons e feitos. Porém, se olharmos para Jesus, veremos que esse conceito de “humildade” não é nada bíblico. O Mestre foi o homem mais humilde que existiu e Ele simplesmente dizia ser o Filho de Deus – “quanta prepotência”, diziam os fariseus – aquele a quem os homens deveriam seguir e amar mais do que a qualquer outra pessoa. E uma vez que devemos seguir os passos de Jesus, Paulo foi muito humilde em suas palavras. À luz de todo seu ensino e todas as suas epístolas vemos que ele foi um servo humilde e fiel. A humildade consiste basicamente em saber que “dEle, por meio dEle e para Ele são todas as coisas. A Ele, pois, a glória eternamente. Amém” (Rm 11:36). Tudo o que fazemos é por Deus e para Deus e o apóstolo Paulo sabia que Deus é quem havia efetuado nEle tanto o querer como o realizar segundo a  sua boa vontade (Fp 2:13). Portanto, suas palavras foram ditas à luz desse ensino, palavras de um servo que viveu toda a sua vida dependendo do seu Senhor. Somente aqueles que vivem em Deus e para Deus podem chegar ao fim da jornada e dizer confiadamente: completei a carreira, guardei a fé e estou certo de que a minha coroa está guardada e eu a receberei naquele Dia.

Muitos cristãos não se sentem preparados hoje para comparecer diante de Deus. Muitos entendem que há certas áreas de suas vidas que ainda precisam acertar pra que possam ser recebidos nos portais da glória. Parece bonito, parece humilde, mas à luz das Escrituras (Sola Scriptura) esse é um pensamento prepotente, pois achar que meus atos são capazes de me tornar aceitável perante Deus é, em última instância, desprezar a obra de Cristo.

Antes de conhecer a Cristo, Paulo cometeu muito erros, pecou contra o Senhor e mesmo depois de se converter, ele continuou sendo falho e pecador, mas o que o levou a não cantar Epitáfio no fim da sua vida? Por que ele não se lamentou pelas coisas que ele fez de errado e pelo que deixou de fazer? Por que Paulo não listou aspectos de sua vida que precisavam ser mudados antes de se apresentar perante Deus?

(Sola Fide).

Fé em Cristo somente.

As palavras de Paulo revelam sua profunda fé e esperança em Jesus Cristo. A fé de Paulo não estava naquilo que ele poderia ter feito para Deus como se isso fosse pudesse justificá-lo ou atribuir-lhe algum crédito. A despeito de suas falhas ele sabia que já fora aceito por Deus e essa convicção foi o que o levou a viver uma vida convicta, uma vida ativa em prol do evangelho.

Se eu pudesse fazer uma análise, eu diria que Epitáfio é a canção do incrédulo.

Não, eu não estou dizendo que a musica é “do Diabo” e que você deva tapar os ouvidos sempre que ela começar a tocar ou não deve mais ouvi-la, mas que ao ouvi-la você deveria dizer a Deus: “Senhor, obrigada porque graças a Cristo, eu não tenho mais razões para remoer e me lamentar pelo passado, vivo o presente com fé sabendo que meu passado foi pago, enquanto espero pelo futuro”.

Chamo de “canção do incrédulo” porque é a canção de alguém que está sempre remoendo o passado, alguém que não recebeu o perdão de Deus e, por isso não consegue seguir em frente. Insiste em lembrar o seu passado porque acha que de alguma forma está pagando hoje por todos os seus erros que cometeu e que seus erros sempre o perseguirão. Alguém que não compreendeu o sentido da palavra Graça (Sola Gratia), e entende que seu futuro só será diferente se ele pudesse voltar atrás e mudar o que passou, só assim teria a garantia de um futuro certo. Seu bem estar está, em última estância, em suas próprias mãos. Esse alguém ainda desconhece o real sentido da cruz, por meio da qual Cristo alterou o nosso passado para que nós não precisássemos pagar pelos nossos erros vivendo uma vida miserável e cheia de culpas.

Ainda que o passado não tenha sido belo e o presente nem sempre seja perfeito, Cristo nos deu razões suficientes para não vivermos a vida cantando Epitáfio (nos lamentarmos pela vida que tivemos ou que não). A cruz nos leva a olhar para o hoje sabendo que Deus já acertou as contas com o nosso passado, somos livres da culpa e da condenação. Deus não nos olha com um dedo acusador e nos lembra daquilo que devíamos ter feito e não fizemos ou que não devíamos ter feito e fizemos.

Muitos de nós chegamos aqui com marcas que não gostaríamos de trazer. Talvez, se você pudesse voltar no tempo teria feito escolhas diferentes. Algumas escolhas foram feitas quando você sequer conhecia a Cristo, outras quando você já conhecia a Cristo, mas por alguma razão preferiu desobedecê-Lo.

A boa nova é que Cristo perdoa pecados, Cristo transforma inimigos como Paulo em amigos. Cristo tira os nossos medos. Deus nos ama apesar das marcas que carregamos, apesar das escolhas que fizemos e que por vezes ainda nos assombram e nos fazem cantar Epitáfio.

Que nesse Dia da Reforma Protestante, nossa oração seja para que Deus reforme o nosso coração e nos conduza às verdades eternas de sua Palavra.  Nos leve a viver somente pela fé assim como Paulo, sabendo que ao fim de tudo chegaremos exatamente onde Deus desejou que chegássemos e que quando for à hora estaremos prontos para encontrá-Lo.

Foi Lutero quem disse: Ainda não sou o que devo ser, mas graças a Deus, já não sou quem eu costumava a ser. A despeito das minhas falhas, tenho fé que hoje eu estou exatamente onde Deus deseja que eu esteja, porque a obra de Deus em minha vida é continua, é constante, Ele começou e é fiel para completá-la. Estamos todos em processo, caminhando rumo ao que Deus tem para nós.

Viva para a glória de Deus e se hoje Ele te chamar, não temas, assim como o apóstolo Paulo, olhe para Cristo e confie no seu sacrifício, suficiente para cobrir os seus pecados e te conduzir diante dEle livre de culpa.

Talvez você pergunte, mas a vida do cristão não deve ser uma vida de arrependimento? E o que é essa canção senão uma canção de arrependimento?!

Certamente, a vida do cristão é uma vida de arrependimento. Arrependimento e mudança.

Depois da morte ninguém pode mudar as escolhas que fez e as sementes que plantou. É fácil se arrepender do passado, se lamentar, mas a Bíblia nos convoca a lembrar do Criador hoje, a fazer as escolhas certas hoje, a nos arrependermos hoje.

Não adianta viver lamentando pelo que deixamos de fazer, pelo tempo em que não éramos cristãos, pelas oportunidades que foram perdidas. Quando o filho do adultério de Davi com Bate-Seba adoeceu, ele chorou, lamentou e jejuou, mas logo que recebeu a notícia da morte da criança ele se levantou, se ungiu, adorou a Deus e foi se alimentar.

Davi não ficou prostrado se lamentando por fatos que já não poderia mudar, Deus já o perdoara. Era preciso seguir em frente, ele não poderia mudar a perda daquele filho, mas ele poderia ter um novo filho da forma correta agora que Bate-Seba se tornara sua esposa, e foi o que ele fez, se deitou com ela, a consolou e ela deu a luz a um filho a quem chamaram de Salomão.

Semelhantemente nós, não temos poder para mudar o passado, mas temos o dia que se chama hoje. Deus não quer que fiquemos nos lamentando pelo que passou, mas que nos levantemos e busquemos mudança, busquemos conserto confiados em Sua boa misericórdia.

Epitáfio é a canção daquele que vive o presente olhando para o passado e se lamenta,  mas o cristão vive o presente olhando para o futuro e se regozija.

Talvez você tenha cometido tantos erros no passado e lamente isso e a sua vida tem sido um epitáfio cheio de “devias”, mas Deus te chama a fazer como o apóstolo Paulo: esquecer-se das coisas que para trás ficam, deixando para trás a dor do pecado e assumindo uma nova vida em Cristo.

Com certeza há coisas que você e eu devíamos ter feito. O que pode ser mudado deve ser feito, mas o que já não pode deve ser deixado aos cuidados de Deus, portanto, siga em frente.

Quando pensar em cantar Epitáfio, lembre-se do Salmo 103:

“Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui segundo as nossas iniquidades. Pois quanto o céu se alteia acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem. Quanto dista o Oriente do Ocidente, assim afasta de nós as nossas transgressões. Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem. Pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó.” 

É possível que você ainda tenha muitos anos de vida pela frente, mas hoje você já está escrevendo o seu epitáfio. Quais serão as palavras que serão ditas no fim de sua vida? Serão lamentos ou serão palavras como as do apóstolo Paulo: “Guardei a fé, completei a carreira”?

Pense na brevidade da vida. A vida se resume a um traço. (Pr. Marcos Henrique Araújo)

Prisca Lessa (1991 ? )

 “Esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo (….) Cristo Jesus.”  

No amor de Cristo

Prisca Lessa