
A cena ainda é límpida na minha mente. O ano era 2018, o último ano do Seminário. Eu estava sentada no chão do meu quarto no alojamento feminino, ao lado da minha cama, chorando compulsivamente. O motivo pode parecer bobo, mas me atravessava profundamente: eu não me sentia amada por Deus. Eu sabia racionalmente que Deus me amava, mas eu não sentia que Ele me amava, sentia que eu era somente tolerável.
Esse sentimento, de ser tolerada, não amada, por Deus, era reflexo das minhas afeições desordenadas. Era o que eu sentia em relação a todo mundo. Eu não me sentia amada por ninguém, e acabei transferindo esse sentimento para o Senhor.
Talvez você também já tenha se sentido assim. Talvez você veja o Criador como um pai fisicamente presente, mas emocionalmente distante, que provê as necessidades básicas dos seus filhos, mas não se envolve emocionalmente com eles, não os ama, apenas os tolera. Talvez você pense que para Deus você não é uma filha amada que vive dentro de um lar amoroso. É provável você se sinta mais como uma lagartixa na parede, que não faz mal, não incomoda ninguém, mas também não é querida, é tolerada. Se você se sente assim, deixe-me lhe dizer uma verdade: suas afeições estão desordenadas, e elas estão mentindo para você.
Somos seres complexos
Não estamos divididas, mas somos feitas de partes que estão interligadas e são indissociáveis. Nossos pensamentos, sentimentos e ações estão conectados. Sendo assim, é necessário que haja um equilíbrio entre essas partes para que o todo viva melhor. Devemos buscar em Cristo o equilíbrio entre a nossa ortodoxia – o que acreditamos -, ortopraxia – o que fazemos –, e ortopatia – o que sentimos.
É claro que neste mundo caído, dominado pelo pecado, sendo nós mesmas pecadoras, nunca seremos totalmente equilibradas em tudo. Isso, porém, não pode ser uma desculpa para não buscarmos o equilíbrio. Pelo contrário, a Bíblia nos instrui a buscar a santidade, a moderação, o equilíbrio em todas as áreas da vida.
Os sentimentos não são ruins em si mesmos. Eles nos foram dados por Deus com um propósito. Quando, contudo, estamos com o coração fora do lugar, é comum que sentimentos negativos nos dominem e nossas emoções fiquem desordenadas. É fundamental, então, buscar em Deus, o Criador das emoções, os ajustes de que necessitamos;
O cristão não é guiado por sentimentos
No século XVIII, iniciou-se a chamada “Idade da Razão”. O Iluminismo surgiu para “iluminar” a razão, fazendo oposição às “trevas da religiosidade”. A razão foi colocada no centro, adorada, idolatrada.
Na atualidade, parece que vivemos na “Idade da Emoção”. Há um emocionalismo exacerbado. As pessoas são guiadas por seus sentimentos e emoções. Estes ditam a realidade, e não o contrário. “Sinto, logo existe.” Se eu sinto assim, então é assim. Se eu sinto que Deus não me ama, então Ele realmente não me ama. Não sem razão – perdoe-me o trocadilho -, o “siga seu coração” e o “nada é errado se te faz [sentir] feliz” são os slogans das gerações atuais. A realidade é medida pelo que se sente, não pelos fatos.
Embora, como dito anteriormente, os sentimentos não sejam ruins em si mesmos e nos tenham sido dados por Deus, eles não são a realidade última, nem ditam a realidade. Os cristãos não são guiados por sentimentos. Ou pelo menos não deveriam ser. Sentimentos vêm e vão. Eles são volúveis, são inconstantes, não oferecem base sólida para firmarmos nossas crenças sobre eles. Não é sábio se orientar por eles. Mesmo um coração regenerado por Jesus pode apresentar sentimentos pecaminosos e enganosos. Precisamos de outra base para nossas crenças. Essa base sólida, firme, constante, imutável é a Palavra de Deus.
Guarde isto: a realidade não é como os seus sentimentos dizem que ela é. A realidade é como Deus diz em sua Palavra que ela é. Estude-a, medite nela, alimente-se dela. Conheça o seu Criador e creia no que Ele diz. Submeta seus sentimentos ao senhorio de Cristo e à luz da Escritura.
A Bíblia afirma que somos amadas por Deus, não apenas toleradas
Por causa da obra de Cristo e por crermos nele, fomos feitas filhas de Deus. O Senhor não é aquele pai presente, mas ausente, que supre necessidades físicas, mas não emocionais. Deus, nosso pai, realmente nos ama. E ele prova esse amor. O amor do Senhor não é de palavras, “da boca pra fora”. Ele prova com ações que nos ama:
“[…] Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós quando ainda pecadores.” (Romanos 5:8; grifo meu)
“[…] Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossas transgressões, nos deu vida juntamente com Cristo […]” (Efésios 2:4,5; grifo meu)
“Vejam como é grande o amor que o Pai nos concedeu: que fôssemos chamados filhos de Deus, o que de fato somos.” (1 João 3:1; grifo meu)
“Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: ‘Aba, Pai’. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus.” (Romanos 8:15,16; grifos meus)
“Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da lei, a fim de redimir os que estavam sob a lei, para que recebêssemos a adoção de filhos.” (Gálatas 4:4,5; grifo meu)
“Em amor nos predestinou para sermos adotados como filhos por meio de Jesus Cristo, conforme o bom propósito da sua vontade.” (Efésios 1:5; grifos meus).
Por sermos filhas, estamos em uma posição privilegiada diante de Deus, um Deus que nos ama. De acordo com o “Nuevo Comentario Biblico”, “essa filiação não é um mero reconhecimento legal de um vínculo filial, de um simples título, mas uma ação concreta”. Champlin afirma que “o crente entra na família de Deus como adulto, espiritualmente falando, capaz de gozar dos plenos benefícios de sua herança, bem como das responsabilidades decorrentes dessa posição.” E continua, citando Merivale: “um filho adotivo de Deus se torna, em um sentido peculiar e íntimo, unido ao seu Pai celeste”.
Minha irmã, de uma forma que possivelmente não conseguimos compreender, gozamos de uma união com Deus proporcionada pela adoção. Agora, participamos de sua natureza divina, no sentido de que temos o seu caráter sendo formado em nós. Isso deve impactar profundamente a forma como percebemos o mundo e vivemos a vida deste lado da eternidade. Como filhas amadas, é claro que temos responsabilidades a cumprir. Devemos viver de forma que demonstre que fazemos parte de uma família real, da família de Deus.
A maneira como falamos, reagimos, usamos nosso tempo, bens e dinheiro, relacionamo-nos e até como nos vestimos deve atestar que não somos deste mundo, mas filhas de Deus. O nosso caráter agora reflete a nossa paternidade. Ou seja, devemos nos esforçar para, com o auxílio do Espírito Santo, crescer em santidade, a fim de que sejamos como nosso Pai. Não existe mais “esse é o meu jeito”, mas o “jeito” de Deus. Além disso, como filhas temos o dever de “anunciar as grandezas daquele que [n]os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9)
Mas como filhas amadas, também temos privilégios. Desfrutamos uma relação íntima com o Pai, sem medo, vergonha ou culpa. Recebemos como herança tudo o que Cristo conquistou por meio de sua vida, morte e ressurreição. Também fomos recebidas em uma família: “Portanto, vocês já não são estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2:19). Não vivemos mais sozinhas. Temos irmãos com quem contar, que se importam conosco, que podem nos ajudar, encorajar, corrigir, com quem podemos sorrir e chorar.
Por isso, minha amada irmã, não viva baseada no que as pessoas, a sociedade, a cultura, a psicologia e os seus próprios sentimentos dizem sobre você, mas no que a Bíblia diz. E ela diz que Deus, seu Pai, ama você, e nada pode separá-la desse amor. Absolutamente nada! Seu valor e dignidade não estão naquilo que você alcançou – ou não alcançou –, na posição em que ocupa – ou não ocupa –, nem em qualquer outra coisa, mas no fato de você ser filha de Deus.
Tendo Deus como Pai e sendo amada por ele, você sempre está sob seus olhos atentos, você sempre terá suas necessidades supridas, você sempre contará com alguém que lhe dará colo quando a tristeza e a aflição invadirem seu coração, e que a disciplinará quando necessário, para que você cresça e se desenvolva bem. Ser filha de Deus é um privilégio. Traz conforto para a alma saber que o Criador do Universo nos adotou em sua família, relaciona-se intimamente conosco e nos ama.
Lembre-se: não é “Eu sinto que…”, mas “Está escrito que…” Você é amada. Muito amada. Aprenda a descansar seu coração nessa verdade.
Vilmara Lima
Referências:
Nuevo Comentario Biblico. El Paso, Texas: Casa Bautista de Publicaciones, 1977, p. 765. Original: “Esta filiacion no es um mero reconocimiento legal de um vínculo filial, de um simple título. Es um hecho concreto.”
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo – Atos e Romanos. São Paulo: Editora e Distribuidora Candeia, 1995, p. 713.